sexta-feira, 12 de julho de 2013

de volta pra casa

Sim, eu dei voltas e mais voltas no mapa até descobrir uma cidade que eu ternamente chamo de lar, como dizem nos clichês. Funcionou, e é mesmo fabuloso. Desbravar mundo atrás de um canto que te tenha significado hoje me parece essencialmente diferente do processo de atribuir significado a uma localidade que te foi dada. Significar é sempre infinitamente rico, em proporção à capacidade criativa e cognitiva do significador, mas cada vez mais eu sou uma defensora incansável da escolha e do livre arbítrio na construção de uma identidade legítima. Como poderia usufruir da paz de me saber eu mesma, de estar cada dia mais me tornando meu eu mais genuíno se ele coincidisse com os eus uniformizados da minha cultura local? Como identificar padrões de comportamento que me limitam e definem se estou sempre mergulhada neles, com exceção de férias ocasionais? Não que eu não acredite na possibilidade de um distanciamento interno, não que eu seja uma pragmática positivista que crê em geografias, não que eu não saiba da possibilidade do deslocamento apesar do espaço, o deslocamento do significado. Acho filosoficamente possível, e já vi suceder com algumas sábias pessoas, que são capazes de romper barreiras sem se mudar de cidade. Mas vi também que é coisa pra sujeito fundo e introspectivo, gente que nasce com um certo despeito pela aprovação social. Libertar-se do que o meio forjou na sua personalidade exige do indivíduo muito silêncio e um processador filosófico potente, que a maioria de nós carece. Acho a viagem de mala e cuia bem mais didática que a vida vivida no mesmo endereço. Os anos em viagem não exigiram de mim que eu tivesse já no início da jornada a disciplina social dos samurais, o desprendimento dos budas, pra que pudesse calmamente me inventar com liberdade. Sair da comunidade me deu a chance de deixar a estrada fazer o trabalho pesado do ensinamento. A mim, restou observar e aprender. A lição veio no lugar do destino final - este sim não alcancei nunca. O filho pródigo - que eu tanto ressenti enquanto crescia, religiosa e comunitária - hoje é um ícone das minhas reflexões. Entendo a comemoração paterna, a mágoa do irmão que ficou, e muito mais ainda a impossibilidade de se levar de volta os tesouros do caminho. Todo souvenir de viagem é um amuleto do impossível.

É bom quando se começa a ter lembranças da vida adulta completando já uma década de aniversário. Quando os joelhos estalam na subida e a máquina perde alguns arquivos no caminho, (mas você ainda passa por moça ao invés de senhora na lojinha). Tenho entre essas lembranças antigas a de sentir medo de que eu nunca viesse a sentir prazer em nada que me parecesse familiar. Temia que nunca alcançasse a paz dos contentes, em silêncio cultivava uma crença sombria de que eu tinha uma deficiência que me impedia de sonhar o sonho recomendado. Lembro e acho graça na minha juventude (sensação nova e boa). Daí eu fico aqui em Dublin saboreando pela primeira vez na vida a tal familiaridade confortável. Logo eu que sempre associei o que é familiar aos sentidos àquilo que os aprisiona. Descubro que, quando se vive por muitos anos em consciente imersão no que é diferente, acondiciona-se ao diferente, e eis que o estranho se torna o novo familiar. Maravilha, por essa eu não esperava! Degusto desse prazer com muita curiosidade filosófica: por que tão bom assim? Intrigada, levo minha curiosidade para tantas rodas de expatriados daqui. Cogita-se se não haveria uma certa imunidade à mesmice, uma imunidade automática e intrínsica ao se estar estrangeiro. Parece que no cerne do incômodo diante da mesmice mora o pavor de "sermos os mesmos e vivermos como nossos pais". Não fugimos do risco por estar aqui, de jeito nenhum. Porque há - oh, e como há - quem se desloque geograficamente sem se deslocar do lugar comum. Mas ao menos as circunstâncias do expatriado são mais favoráveis ao descondicionamento, se houver coragem.

Contorno saltitante o quarteirão da minha casa, vislumbro sorridente as várias lojinhas com letreiros árabes, ouço um grupo de adolescentes espanhóis, o caminhoneiro polonês amaldiçoa o motorista da frente com sotaque, transeuntes fazem o que transeuntes fazem na maioria dos centros da maioria das cidades do mundo. Porém eles vêm dos quatro cantos do planeta! Continuo achando que o mundo é enorme e vasto, e que é preciso estar em movimento para se ter mais chances de viver experiências e sensações diversas. São as experiências estrangeiras, as experiências do que é incomum e bizarro, que distinguem diante dos nossos olhos o que em nós é fruto de condicionamento familiar e cultural, do que é de fato uma manifestação genuína do que somos em nossa unicidade. De repente, não me faz sentido mais encontrar uma cidade assim como quem encontra uma alma gêmea. Disseram bem que Paris é um estado de espírito, o que me faz pensar que toda Pasárgada é necessariamente imaginária. O que fica das viagens não é o conforto de se chegar no destino, mas o conforto de parar de procurar por ele. Quando estou na cidade em que cresci, sinto que deveria estar em movimento, que meus gestos estão regredindo a automatismos aleatórios altamente prejudiciais, sinto a síndrome do progresso, uma urgência de conquista que sufoca até que vira desejo de estrada. Suspiro lembrando de Carlos Drummond de Andrade quando ele, mineiríssimo, poetisa que Minas, como suas montanhas, vê-se melhor de longe. Eu diria que o parisiense também precisa muito se mudar de Paris pra compreendê-la pra além de si. Pois não são nossas miopias as únicas responsáveis pelos nossos sofrimentos? Falo de sofrimento, que é sempre opcional; e não da dor, esta inevitável. Enfim, acho que nossa máquina tem olhos e pernas pra que tomemos distância nas nossas tomadas de decisão. "Felicidade são meios de transporte".

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